Enquanto países como Bolívia e Peru são de maioria indígena, alguns vizinhos tiveram processos de formação nacional que negaram sistematicamente a existência de povos originários até o ponto em que, hoje, o caminho em busca de conquistas ou de derrubar o racismo ainda é muito forte.
É o caso da Argentina, que passou por fortes políticas de embranquecimento e negação das identidades que já existiam no continente antes da colonização europeia.
Frente a isso, agrupações como o Identidad Marrón se fazem essenciais para reclamar os direitos sociais que há séculos são negados.
A Campanha do Deserto na Argentina
A chamada Conquista ou Campanha do Deserto na Argentina foi uma série de expedições entre 1878 e 1885 partindo de Buenos Aires para os interiores, buscando expandir o território — projeto similar ao dos bandeirantes no Brasil.
Chegou a regiões como o Pampa e a Patagônia, áreas que ainda eram totalmente dominadas pelos povos indígenas. Com a chegada do exército, as terras ancestrais foram tomadas, enquanto a população local foi deportada e sofreu um processo de aculturação. O número oficial conta 3200 vidas indígenas perdidas.
“O objetivo era desindigenizar a Argentina porque o ‘selvagem’ não ia com esse pensamento da construção do estado-nação, que é branco, ocidental, eurocentrista e cristão-cêntrico. Esse estado-nação foi construído por meio de roubos e mortes contra pessoas com nossos traços, nossa cor”, diz Sary Pérez, ativista do coletivo Identidad Marrón de Jujuy.

A Identidade Marrom e aqueles que sofrem racismo
A chamada Identidade Marrom faz alusão à cor da pele dos povos indígenas que são, em maioria, de origem Aymara — são maioria na Bolívia e muito presentes em regiões do noroeste argentino, como é o caso de Jujuy, Salta ou Tucumán.
Assim como discursos que também encontramos no Brasil, Sary fala sobre a tentativa de apagar a identidade ao dizer que “na Argentina não existe racismo porque são todos frutos da miscigenação […] A mestiçagem é um instrumento ocidental para apagar nossas raízes indígenas”.
Ao explicar sobre a pele, ela afirma que “[as pessoas] usam termos como ‘pele de canela’, ‘moreno’… Mas nós entendemos que somos marrom. E ao dizer que somos marrons, estamos falando de nossos fenótipos, colocando nome no que nunca teve nome, porque como dizem, o que não se nomeia não existe”.
A reunião dos indígenas na Argentina surge como uma resposta política a esse apagamento e ao racismo que vem se perpetuando estruturalmente há séculos.

A marginalização de corpos marrons
É comum que pessoas marrons sofram com o perfilamento racial ou mesmo xenofobia, mesmo tendo nascido na Argentina. “Ser marrom […] é também, mais que nada, saber que temos uma procedência e uma classe social. É símbolo de marginalidade e delinquência. Se tem algo que esse país fez é colocar o marrom como delinquente, que o migrante vem para roubar o trabalho dos argentinos. Mas nós sabemos que os marrons existimos e habitamos o continente há muito tempo.”, diz Sary.
De fato, durante o 33° Congreso Nacional del Ser Argentino y su Cultura, em 2020, a presidenta do Instituto Nacional de Asuntos Indígenas (INAI), Magdalena Odarda, declarou que a taxa de pobreza mais alta entre povos indígenas na América Latina é da Argentina.
O abandono estatal chegou a refletir na pandemia da Covid-19. O relatório Efeitos Socioeconômicos e Culturais da Pandemia COVID-19 e do Isolamento Social, Preventivo e Obrigatório nos Povos Indígenas na Argentina, elaborado por mais de 100 investigadores do país, mostra que irregularidades na demarcação de terras e invisibilização foram fatores que ajudaram no agravamento da situação entre os indígenas — alguns lugares sofreram com falta de água potável, por exemplo.
O problema foi agravado pela perda de fontes de renda, também. O relatório mostra que a informalidade profissional pode chegar de 60 a 80% entre povos originários, dependendo da região do país.
“Sabemos que a pobreza existe, mas também a construção da racialização da pobreza. Nessa construção histórica de excluir as pessoas marrons, ficamos limitados a que tipo de lugares podemos ocupar, ou qual trabalho podemos almejar. Não podemos imaginar ser advogados ou médicos porque nossos traços não permitem que formemos parte desses espaços — nem frequentar museus, ou ser protagonistas de um filme”, afirma Sary Pérez.
O racismo e os estigmas que ele traz consigo acabam se tornando, ao mesmo tempo, xenofobia. Os indígenas marrons com fenótipos aymaras são, muitas vezes, chamados de bolivianos de forma pejorativa. A autora decolonial Chana Mamani e também integrante do Identidade Marrom fala sobre a nacionalização do racismo no ensaio “Racismo estrutural: susceptibilidade, veracidade ou o que?”.
Em seu texto, cita alguns exemplos de micro agressões racistas que ocorrem na Argentina, como é o caso de assumir que pessoas marrons vêm obrigatoriamente da Bolívia ou Peru — afinal, os indígenas são de lá, como pensam algumas pessoas. Ou, no caso contrário, pensar que uma pessoa boliviana é de Jujuy porque ela “fala espanhol bem”.
É válido ressaltar que a questão da xenofobia não acontece com pessoas brancas europeias. Sary Pérez comenta sobre a criação de um imaginário do “europeu trabalhador” que chegou ao país para ajudar a fazê-lo crescer. “O migrante de Bolívia, Peru e Equador, teriam vindo para roubar oportunidades de trabalho dos argentinos, a serem os ‘vagos que não fazem nada’ e virarem delinquentes”.
Os marrons também existem no Brasil

A forte onda de migrações vindas, em especial, da Bolívia, fez com que a população marrom também crescesse no Brasil. Em São Paulo, os bolivianos já são a maior comunidade estrangeira a habitar a cidade — ultrapassando japoneses e coreanos, por exemplo. Ainda assim, não há políticas públicas que se comprometam a auxiliar na identificação dessa população.
Natali Mamani, artista boliviana que cresceu no Brasil e tradutora do texto de Chana Mamani, comenta que a falta de visibilidade afeta até mesmo no âmbito institucional. Pessoas marrons e indígenas que são imigrantes não são reconhecidas dessa forma dentro do Brasil — pois o sistema só lida com etnias que existem nos limites do território brasileiro. “Então, quem eu sou? Eu sou parda? Mas isso acaba dificultando ainda a nossa identidade […]”.
Também é preciso considerar as pessoas marrons que nascem e são criadas aqui. Elas também sofrem o racismo e também recebem insultos xenofóbicos, ainda que sejam, de fato, cidadãs brasileiras.
A construção dessa identidade, seja entre imigrantes ou nascidos no Brasil, se torna ainda mais difícil por aqui. “A gente cresce sem nenhuma referência na família e na escola também não se fala sobre isso […] Muitas vezes deixamos passar cenas de racismo como se fosse bullying ou xenofobia […] E aí você quer ‘ser brasileiro’ para tentar ser aceito, mas na verdade não é. A questão não é ser brasileiro, mas sim que a pessoa é marrom”.
A conversa do Exclamación com a Sary Pérez e a Natali Mamani sobre a Identidade Marrom e o que é ser indígena andino na Argentina e Brasil também virou um episódio do podcast! Escute abaixo no Spotify ou encontre aqui sua plataforma favorita de podcasts!