Cinema peruano e os retrocessos da Lei Tudela

Texto: Marina Rodrigues | Edição: Isabela Guiaro

Enquanto todos os olhos se voltam para o “decretaço” que vem sendo promovido por Javier Milei na Argentina, não tão longe dali, mais precisamente no Peru, outro governo pouco popular também vem tirando o sono do cinema nacional. 

Os últimos meses de 2023 foram de grande preocupação para a indústria peruana por um caso bastante peculiar, digamos. O terceiro longa de “Paddington”, que retrata um urso nativo do Peru e suas aventuras no Reino Unido, estava programado para ter filmagens no país, mas foi realocado para a Colômbia sob justificativa de intensas burocracias enfrentadas pela produção para ter as autorizações necessárias para a produção. 

Montagem encontrada no blog JoBlo

De fato, não há muito o que elogiar o Peru neste sentido, afinal, o país que vive de crises políticas sucessivamente e não consegue manter uma indústria em crescimento recorrente, embora os filmes peruanos tenham tido uma performance acima da média no último ano. 

No entanto, a direita liberal – e cada vez mais extremista – viu com bons olhos este contratempo e tomou para si a incubêmbia de tentar apagar a marca cultural dos povos originários no cinema do país com a desculpa de melhorar os processos internos para atração de filmagens estrangeiras. 

Promovido pela parlamentar Adriana Tudela (daí o apelido de Ley Tudela), do Avanza País, o projeto tem como objetivo modificar toda a Lei do Audiovisual, uma conquista apenas de 2019, quando seus vizinhos mais próximos já comemoraram 30 anos, 40 anos de existência de políticas públicas. 

Partes das mudanças propostas por Tudela está o fim do subsídio para pós-produção, distribuição e comercialização dos filmes peruanos, além de diminuir em 50% o apoio público para a produção de novas obras. 

Deputada Adriana Tudela

O objetivo claro é descrito logo abaixo no projeto, já que a deputada também propõe a criação de um sistema único para requisitar autorização de filmagens, tanto para produções gringas como as nacionais, o que, apesar de não parecer, dá o benefício maior aos estrangeiros, uma vez que com o orçamento completo, teriam mais rapidez em iniciar o processo online. De outubro para cá, mais de 40 organizações de profissionais audiovisuais da América Latina, Europa e Estados Unidos se uniram contra a tentativa de apagamento cultural no Peru. 

Durante a Mostra de Cinema Indígena em Lima, capital do Peru, a ativista indígena Tarcila Rivera Zea não deixou o momento passar sem antes fazer um alerta sobre a “Ley Tudela”. Em seu discurso, Zea lembra que o cinema originário é um direito dos povos e está a serviço da cultura muito antes do mercado e precisa ser preservado, pois nada mais é do que a representação da identidade de um país.

Para entender a importância da representação indígena, é preciso analisar a composição do país: 73% da população peruana descende de povos originários, enquanto o Quechua – o mais importante idioma indígena do país – é predominante entre 13% da população e perde apenas para o espanhol como língua mais falada na região. 

Também foi através do cinema e as iniciativas do mesmo que cineastas indígenas puderam exportar a imagem do Peru. Podemos citar o longa “Wiñapaycha”, de Óscar Catacora, que mobilizou o país no estrangeiro e conta a história de um casal de idosos que vivem na região peruana dos Andes e esperam paciente pelo retorno do filho que saiu de casa há muito tempo. 

Cena do filme "Wiñapaycha"

O relato da família emociona por ser real, um documentário que levou alguns anos para ser concluído e foi um dos primeiros filmes peruanos a contar com a possibilidade da Lei do Audiovisual para sua distribuição e comercialização nos anos mais recentes, podendo ser visto hoje na plataforma de streaming do Prime Video. 

Mas este não é o único sucesso de cineastas indígenas a tomar proporções internacionais. Em 2022, o Peru escolheu o longa “Manco Cápac” como o representante do país no Oscar. Nascido de um projeto familiar, o longa demorou uma década para ser concluído e presta uma homenagem ao povo Inca que habitava a região antes da colonização. 

A linha tênue entre representatividade cultural e comercialização já justifica a tentativa de preservação dos incentivos recém criados e que podem ajudar o país andino a se fortalecer no setor, seguindo exemplos de fortalecimentos já vistos na Colômbia, Chile, Uruguai, Argentina, Paraguai e, claro, no nosso Brasil. 

Por enquanto, a “Ley Tudela” está na geladeira, já que o governo de Dina Boluarte vem sofrendo com a impopularidade e a campanha em prol do cinema nacional vem dando resultados positivos. Infelizmente, a Argentina já não pode dizer o mesmo com Milei e sua sede de destruição da identidade cultural. 

Imitando os passos de Tudela no que diz respeito a promover benefícios públicos para produções gringas, Milei propõe retirar a exclusividade do cinema argentino em acessar os fundos públicos do audiovisual, barateando os custos hollywoodianos e vendendo a mão de obra barata de profissionais que tentam lutar para preservar seus empregos. 

Contando com o silêncio de parlamentares que ainda não se pronunciaram a respeito do “decretaço” anti cultural, os argentinos correm contra o tempo para apagar um incêndio que já se propaga desde 2017. 

Seja no Peru ou na Argentina, a nova onda de liberalismo no continente latino tenta promover uma sobrevida ao Norte, principalmente no que diz respeito ao audiovisual e a estrutura hegemônica de Hollywood cada vez mais ameaçada pelos avanços asiáticos. 

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Autor: Redação Exclamación

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